Por Claudia Wallin
O auditor sueco me ouve com aquela expressão de
quem tenta medir o QI do seu interlocutor. A pergunta é – como evitar a
corrupção em empresas estatais, e impedir sua utilização como pólos de
transferência de recursos públicos para grupos privados bem conectados com o
poder político? A resposta, ele diz, é elementar.
“É para isso que servem auditorias independentes,
regulares e transparentes sobre as operações das estatais. E quero dizer
auditorias verdadeiramente independentes, que façam não apenas um trabalho de
fiscalização, mas também de promoção da eficiência”, observa Dimitrios
Ioannidis, um dos chefes responsáveis pela fiscalização das estatais da Suécia.
“Se você não faz isso, só pode ficar perplexo com
os resultados. E quando descobre a magnitude do problema, vai dizer, “oh, isso
aconteceu? Mas como isso pôde acontecer?”
“Ora, aconteceu porque fizeram aquele mau negócio,
ou tomaram aquela má decisão, ou realizaram práticas corruptas. E todas essas
atividades precisam ser fiscalizadas regularmente, na medida do possível, para
tentar conter tais práticas”, conclui o auditor, neste exótico país onde cargos
nas empresas públicas não são rifados entre partidos políticos.
Estamos na sede do Serviço Nacional de Auditoria da
Suécia (Riksrevisionen), o órgão responsável pela fiscalização das empresas
públicas do país. Seus duzentos auditores vigiam com mil olhos um portfolio
considerável: são 49 estatais, com valor estimado em mais de 500 bilhões de
coroas suecas (cerca de 60 bilhões de dólares).
Mas no modelo sueco de controle das estatais, a
mesma mão que abre a ferida também previne e cura: é um sistema que dá ênfase
particular a políticas de boa governança, e não apenas ao chicote.
Os auditores do Riksrevisionen têm assim a dupla
missão de produzir relatórios de fiscalização, e também de eficiência – que
apontam, com regularidade, correções de curso e práticas de boa gestão para
melhorar o desempenho das estatais, promover seu crescimento e evitar
aberrações evitáveis.
São as chamadas auditorias de performance. Seu
objetivo primeiro não é usar a lupa para caçar deslizes – e sim colaborar para
o aprimoramento da gestão das empresas públicas.
Em outras palavras, o que se quer é não ter que
punir.
“Não somos um tribunal”, pontua Ioannidis, assessor
especial da unidade de governança de estatais no Riksrevisionen e Ph.D no tema.
“Em essência, o que fazemos é refletir. Uma
constante reflexão crítica sobre a forma como as empresas estatais estão sendo
administradas. Nas auditorias de performance, trabalhamos em um nível mais
estratégico, por uma questão de eficiência. De manter a casa em ordem.”
De que forma?
“Fazemos perguntas como, ‘o governo nomeou um
conselho de administração relevante, e verdadeiramente profissional, para esta
estatal? Os investimentos da estatal das ferrovias estão sendo planejados e
organizados como devem? Os riscos estão sendo considerados com prudência?”
“Porque quando as empresas públicas têm muito
dinheiro, por exemplo, muitas vezes elas se tornam pouco cuidadosas na tarefa
de fazer análises sérias e contundentes sobre cálculos de risco. E estamos
falando de dinheiro público. Ou seja, de dinheiro dos contribuintes, que
precisam ter confiança no sistema.”
Metas definidas pelo poder político para as
estatais são acompanhadas de perto.
“Por exemplo, o Parlamento disse que queria ver a
(estatal sueca de energia) Vattenfall se posicionar entre as empresas líderes
do mercado. Mas em nossas análises, verificamos que a Vattenfall não tinha uma
estratégia satisfatória de longo prazo a fim de poder alcançar aquele objetivo,
e apontamos recomendações”, conta Dimitrios Ioannidis.
Os relatórios produzidos pelo Riksrevisionen são
submetidos ao Parlamento, que por sua vez envia os documentos ao governo, que
tem por obrigação comentar os resultados. Se o relatório recomendar correções
de curso, as autoridades têm prazo de quatro meses para informar que medidas já
foram ou estão sendo tomadas a fim de aumentar a eficiência de suas operações.
O comitê parlamentar responsável analisa então as medidas relatadas, e o
Parlamento toma uma decisão final sobre cada caso.
A prevenção da corrupção nas empresas públicas
também passou a ocupar um tempo generoso nas reflexões dos auditores suecos.
“Concluímos há alguns anos este amplo estudo sobre
o risco da corrupção nas estatais”, ele diz, batendo o indicador sobre o
relatório de mais de cem páginas que me entrega.
“Isto não é o resultado de uma auditoria pós-fato,
que acusa – “nossas estatais estão sendo corruptas”. É um estudo feito com
profundidade, e que contém recomendações sobre como estar alerta para a
possibilidade de ocorrência de práticas corruptas. Trata-se de um trabalho
preventivo, que tem a finalidade de assegurar que nossas estatais tenham firmes
regras institucionais para evitar a corrupção”.
O relatório advertiu que a prevenção da corrupção
não estava sendo entendida como prioridade para as autoridades e empresas
públicas suecas. E demandou a criação de diretrizes explícitas para
conscientizar o comando das estatais e afiar o controle.
“O fato de a Suécia ser o terceiro país menos
corrupto do mundo não significa que o risco da corrupção seja zero”, pondera o
auditor. “E corrupção na esfera pública é prejudicial para a democracia e o
Estado de Bem-Estar Social”.
Sem Cargos
Comissionados e sem Interferência Política
Não há cargos comissionados nas estatais suecas: a
direção, os conselhos de administração e toda a cadeia executiva é formada por
profissionais da indústria, sem vinculação partidária. O que reduz o risco de
ocorrência de fraudes com a conivência de altos executivos das empresas.
“A ambição do governo sueco é que as empresas
públicas sejam geridas de forma estritamente comercial, nos moldes de uma
empresa privada. Os diretores e conselheiros das estatais não podem ser,
portanto, políticos ou amigos de políticos. São profissionais do setor, todos
eles. Têm que saber o que estão fazendo”, ressalta Ioannidis.
Nas holdings em que o Estado detém o controle
acionário, em geral o governo nomeia um representante para o conselho de
administração.
“Mas não é o governo que decide diretamente quem
vai dirigir as estatais. A nomeação dos executivos e dos conselhos de
administração é uma das mais importantes tarefas desempenhadas por uma unidade
autônoma do poder executivo, que é responsável pelas estatais e que sabe que
suas decisões são controladas e escrutinizadas”, acrescenta o auditor.
É particularmente interessante, no modelo sueco, o
princípio chamado de “Ministerstyre”: trata-se de um código de conduta que
proíbe os ministros, assim como o primeiro-ministro, de interferir nas
operações das empresas estatais, assim como das agências governamentais.
Quem quebra a regra, é diligentemente reportado ao
Comitê de Constituição do Parlamento (Konstitutionsutskotet, ou KU), para uma
vergonhosa sabatina pública transmitida pela TV sueca. Porque a lei que protege
as estatais contra a interferência política está gravada na Constituição sueca.
“A lei que rege as estatais determina de maneira
clara qual é o papel do governo e qual é o papel do conselho de administração,
e estabelece princípios muito claros que protegem as empresas públicas de
qualquer tipo de ingerência por parte do poder”, diz o auditor.
O auditor sueco
Dimitrios Ioannidis
Freios e Contrapesos
O Riksrevisionen é parte de um robusto sistema de
“checks and balances”, os freios e contrapesos que fazem da Suécia um dos
países menos corruptos do mundo.
“Se identificamos um mau negócio ou uma má decisão,
reportamos o problema e apontamos soluções. Se identificamos uma suspeita de
crime, chamamos a polícia e os promotores”, diz o auditor Dimitrios Ioannidis.
A partir da suspeita de alguma prática ilegal, o
caso passa a ser investigado pela Agência Nacional Anti-Corrupção (Riksenheten
mot Korruption) e pela temida Ekobrottsmyndigheten, a Autoridade para Crimes
Financeiros.
A maior investigação em curso é o caso da Telia
Sonera, a gigante sueco-finlandesa de telecomunicações na qual o governo sueco
detém participação de 37% – e que diante da pressão pública decidiu retirar-se
inteiramente dos mercados da Ásia Central, a partir de suspeitas de que teria
pago suborno a autoridades de países reconhecidamente corruptos, como o
Uzbequistão, a fim de obter licenças de operação naqueles mercados.
Casos como o da Telia Sonera surpreenderam um país
pouco habituado a denúncias de corrupção, e que agora aperta seus controles.
Maus investimentos das estatais também estão na
mira dos auditores: o Riksrevisionen fez recentemente uma ampla auditoria das
práticas de cálculo de risco das estatais, diante da ocorrência de casos em que
os investimentos realizados pelas empresas públicas tiveram um impacto negativo
nas finanças.
O resultado foi um ácido relatório.
“O governo não está tomando medidas suficientes em
suas diretrizes para garantir um eficiente cálculo de risco nas operações das
empresas estatais, levando-se em consideração a importância destas empresas
para as finanças públicas”, diz o relatório.
Na sequência, os auditores listam uma série de
recomendações a serem implementadas. Uma delas é a introdução de critérios
rigorosos para a realização das análises de risco, a serem seguidos pelos
conselhos de administração das estatais. Outra é a exigência de que os
conselhos de administração informem o Parlamento, com regularidade, sobre os
riscos envolvidos em atividades que possam afetar o valor das empresas e
futuros dividendos para o Estado.
“Fazemos recomendações tanto às empresas como ao
governo, ou ao Parlamento. Como por exemplo, sugerindo a complementação de uma
lei. Desta maneira, podemos ser parte de um processo de aprimoramento das
estatais”, diz o auditor.
Os critérios de supervisão das estatais são os
mesmos aplicados às empresas privadas. Como é de praxe, todas passam por
auditorias internas e também externas, estas conduzidas por grandes empresas
internacionais como a Pricewaterhouse Coopers e a Ernst & Young – que já
foram alvo, aliás, de vários processos por barbeiragens. Em 2001, o escândalo
contábil da distribuidora de energia americana Enron chegou a levar a gigante
Arthur Andersen à falência.
Os auditores independentes do Sistema Nacional de
Auditoria da Suécia completam, assim, o ciclo da fiscalização financeira das
empresas públicas. E cobram resultados:
“Normalmente, dois anos depois de termos auditado
uma estatal e identificado problemas, voltamos a fazer uma nova auditoria para
averiguar: a empresa adotou as correções de curso recomendadas? Melhorou suas
rotinas de gestão? Em seguida, publicamos o resultado na internet.’
Independência e
Transparência
A independência dos auditores do Riksrevisionen é a
pedra angular do sistema.
“Somos um órgão independente, que fiscaliza não só
as estatais como toda a cadeia do poder executivo, e que responde ao Parlamento
com o objetivo de fortalecer os princípios democráticos”, diz Dimitrios
Ioannidis.
Não era assim: há pouco mais de uma década, tanto o
Parlamento como o governo tinham seus próprios órgãos de auditoria, que
fiscalizavam as empresas públicas e agências governamentais.
“Houve então um grande debate, e concluímos que
aquele não era um sistema verdadeiramente independente de fiscalização. Porque
um auditor do Parlamento, por exemplo, tinha o poder de iniciar investigações
que podiam atender apenas aos interesses dos membros do Parlamento. Foi então
que decidimos criar o Riksrevisionen, em 2003, como um órgão essencialmente
independente. Porque até governos precisam ser supervisionados, e a supervisão
deve ser imparcial”, aponta Ioannidis.
A independência do Riksrevisionen é garantida pela
Constituição sueca. Os três auditores-gerais que comandam o Serviço Nacional de
Auditoria são nomeados pela Comissão de Constituição do Parlamento, cumprem
mandatos de sete anos de duração e não podem ser re-eleitos.
“Pode-se presumir que ter três auditores-gerais no
comando, em vez de apenas um, tem o potencial de reduzir eventuais interferências
externas. E são três auditores-gerais que não podem ser facilmente destituídos,
e que têm independência para fiscalizar”, observa o auditor.
E destaca: a transparência é o elo fundamental que
rege todo o sistema sueco.
“E quando falo em transparência, quero dizer uma
transparência ampla e funcional, que garanta acesso irrestrito a informações e
documentos. Para que tanto o Parlamento como os cidadãos tenham informações
efetivas sobre o que acontece dentro das estatais.”
Os auditores atuam
como uma espécie de farol para os contribuintes, no revolto mar de balanços e
balancetes produzidos por cada autoridade pública. Seus veredictos sobre a
atuação de cada órgão são publicados regularmente na internet, fortalecendo
assim o controle social.
“Sem dúvida. Os cidadãos podem acompanhar o que se
passa nas estatais, a mídia pode reportar sobre a situação das empresas com
dados fundamentados. O governo também responde aos nossos relatórios, e faz
comentários. Às vezes o governo discorda de alguma recomendação, e faz uma
argumentação contrária. Dá-se então um diálogo público, que é a forma saudável
de comunicação quando se trata de interesses públicos”, diz Ioannidis.
Os auditores do Riksrevisionen se debruçam agora
sobre um vasto projeto de análise comparativa sobre as práticas e o desempenho
de todas as 49 estatais suecas, incluindo oito sociedades de economia mista.
“A regra número um para fiscalizar as estatais são
as regras da lei. Leis são feitas para serem cumpridas. E em nossa
Constituição, a Lei do Orçamento manda que o patrimônio público deve ser
administrado com eficiência e boa governança. Porque trata-se do dinheiro dos
contribuintes”, completa o auditor sueco.
O próprio
Riksrevisionen é, por sua vez, fiscalizado por empresas
internacionais de auditoria: a auditoria interna do órgão sueco é realizada
pela Price Waterhouse Coopers, e a auditoria financeira é feita pela BDO, uma
das maiores do mundo no setor.
”A idéia é garantir a total confiança da sociedade
nas autoridades públicas”, diz Claes Norgren, que acaba de encerrar seu mandato
de sete anos à frente do Serviço Nacional de Auditoria sueco.
E como nenhum sistema está totalmente imune à
corrupção, mais essencial é a fiscalização independente e constante dos órgãos
públicos: investigação recente do jornal sueco Dagens Nyheter denunciou que uma
das diretoras do Riksrevisionen, Susanne Ackum, havia contratado antigos
colegas de trabalho para ocupar altos cargos no órgão, em clara violação às
diretrizes formais para a contratação de funcionários públicos. Susanne também
abriu detalhes de auditorias em curso para funcionários do governo e
sindicatos, maculando assim a confiança na independência do trabalho conduzido
pelo Riksrevisionen. Acabou assim a carreira de Susanne, que assumira o cargo
em 2015:
“Agi de uma forma que torna impossível para mim
continuar a exercer minha função”, disse Susanne Ackum em seu comunicado de
renúncia.
Para o Diário do Centro do Mundo
18 de Julho de 2016
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